XIV -
Um Boticário Albicastrense na Casa de
Tormento da Inquisição
Por Manuel da Silva Castelo Branco
(Continuação)
Lázaro Rodrigues
Pinheiro, natural desta vila e marido de Clara Henriques, faleceu com todos os
sacramentos em 8 de Abril de 1728. Não fez testamento e foi sepultado em cova
de fábrica, de que se fez este Assento que assinei dia, mês e ano «ut supra» . O Vigº Frei Manuel
Rodrigues Corugeiro!
Comentário
Lázaro Rodrigues Pinheiro, cujo assento de óbito acabamos de transladar, nasceu
em Castelo Branco a 16.9.1659, sendo filho do mercador João Nunes Viseu e de
sua mulher D. Ana Rodrigues, ambos cristãos-novos. Naquela vila estudou
Gramática (Latim); depois e durante 4 anos, aprendeu com mestres aprovados a
arte de boticário; e, examinado nesta ciência de acordo com o Regimento, foi
considerado apto e suficiente pelo que se lhe passou a respectiva carta régia (
Lisboa, 13.1.1680).
Monta botica na terra
natal e casa em Alcains, a 3.1.1697, com D. Clara Henriques de Paiva, filha de
Francisco Lopes Morão e D. Leonor de Paiva; e dela houve vários filhos, o
primeiro dos quais nasceu em Castelo Branco a 27.8.1698 e teve o nome do avô
paterno (João Nunes Viseu). Ora, embora baptizado e freguês habitual da igreja
de S. Miguel, o nosso boticário acaba por apartar-se da Fé Católica e passa a
professar a chamada Lei de Moisés, seguida havia séculos pelos seus
antepassados judeus. No nosso país, tal facto era então objecto de graves 25 penas
(até a de morte), pelo que Lázaro Rodrigues Pinheiro começa a ter uma vida
dupla...
Assim, aparentemente,
continua a ser católico praticante, indo à igreja e confessando-se mas, no seu
íntimo, não acreditava no Mistério da Santissima Trindade nem tinha Cristo por
Deus verdadeiro e como o Messias pro-metido; antes, esperava ainda por Ele «e
só acreditava no Deus dos Céus, a quem se encomendava com a oração do Padre
Nosso, mas não dizendo Jesus no fim...» Clandestinamente, comunicava com outras
pessoas da mesma nação, às quais se declarava por judeu; e, na intimidade da
sua casa, ele e a família praticavam os ritos e cerimónias judaicas, guardando
os sábados como se fossem dias santos e jejuando nas festas comemorativas do
Dia Grande da Rainha Ester... Porém, o destino não lhe permitiria manter esta
situação por muito tempo.
Em finais de 1710,
alguns familiares são presos pela Inquisisão e ele, receando ser descoberto
através dos seus testemunhos aconselha-se com Paulo de Figueiredo de Refóios,
comissário do Santo Oficio em Castelo Branco e parte imediatamente para Lisboa,
apresentando-se no palácio dos Estaus, ao Rossio, em 5.2.1711... Inicia-se,
assim, o seu processo perante o dito Tribunal, emcuja Mesa começa a confessar,
a 14.2.1711, denunciando parentes e conhecidos pertencentes a diversos ramos de
cristãos-novos: Moratos, Idanhas, Viseus, Penteados, Aires, Nunes, Sordos,
Cunhas, Pavas, etc. Do inventário feito aos seus bens, a 26.3.1711, consta
possuir em Castelo Branco uma vinha no Vale do Romei-ro, que comprara por
150000 réis; mais outro pedaço de vinha, no sítio da Ribeira, que lhe custara
15 a 16000 réis; e a botica, avaliada em cerca de 50 a 60000 réis. A 11.2.1711,
volta à Mesa onde confessa mais culpas mas o Tribunal não se dá por satisfeito pois
o réu, involuntária ou propositadamente, não incriminara algumas pessoas já
comprometidas noutros processos e com os quais comungara a sua crença... Por tal motivo, é admoestado e advertido das
faltas e diminuições do seu testemunho, sendo entregue ao juízo ordinário e
entrando nos cárceres secretos da Inquisição, a 18.3.1711. A 12.6.1711, produz
mais confissão mas, considerada insuficiente e não totalmente verdadeira, é
acusado de heresia e apostasia e condenado à prova do tormento 20.6.1711). Este
realiza-se 6 dias depois, pelas 9 horas da manhã e perante o inquisidor Manuel da
Cunha Pinheiro (pelo ordinário), os deputados Frei Miguel Barbosa e Marfim
Monteiro de Azevedo, o notário, médico e cirurgião e outros oficiais da Inquisição.
O notário lê-lhe a
sentença e, mais uma vez, insiste em que diga toda a verdade, «para descargo da
consciência e salvação da sua alma, pois só assim evitaria os trabalhos e
perigos a que iria ser submetido», advertindo-o «com muita caridade, de que se
naquela diligência morresse, quebrasse algum membro ou perdesse qualquer
sentido, a culpa seria unicamente dele e não dos senhores inquisidores e mais
ministros do Santo Oficio, que haviam feito justiça conforme o merecimento da
sua causa».
O réu responde com o
silêncio a tão insidiosa e hipócrita argumentação, pelo que é amarrado ao potro
e sofre os primeiros 3 tratos da polé. Desesperado com as dores, grita e clama
por audiência, onde denuncia outros praticantes, entre os quais o Dr. Manuel
Mendes Monforte (tio de sua mulher e médico no Brasil), a própria mulher e o
filho mais velho, apenas com 13 anos. Tudo isto não satisfaz ainda os
inquisidores, sendo levado de novo à tortura e desta vez, submetido a
«tratamento» completo.
Não podendo suportar
mais o sofrimento, pede misericórdia e perdão, «com mostras de arrependimento».
A 30.6.1711, a Mesa do Santo Tribunal revê pela 4ª vez o seu processo e acaba por
condená-lo a cárcere e hábito penitencial e a abjurar das culpas em Auto de Fé,
celebrado no Rossio a 26.7.1711, com a presença d’El-Rei, altas individualidades
e muito povo. Finalmente, Lázaro Rodrigues Pinheiro é libertado a 6.8.1711 e
regressa a Castelo Branco, retomando o seu trabalho na botica. Mas, pouco tempo
depois, a 16.10.1711, a mulher e o filho mais velho apresentam-se
voluntáriamente nos Paços da Inquisição em Lisboa (os Estaus), a fim de
confessarem também as suas culpas, saindo reconciliados pelo mesmo Tribunal, a
7 e 27.10.1711, respectivamente.
O casal irá ter mais
filhos e para eles o pesadelo terminou... mas não para a sua geração. Ora,
processos semelhantes ao que acabei de descrever foram levantados a muitos
cristãos-novos albicastrenses, em especial no decurso dos séculos XVII e XVlll;
e alguns deles pagariam na fogueira um pesado tributo pelas suas convicções...
(Continua)
O ALBICASTRENSE
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