“HORRORES COMETIDOS EM NOME
DA FÉ”.
Recordar albicastrenses do passado é um dever que este albicastrense não descarta, ao fazê-lo, estou a dar a conhecer ou a prestar justiça, a gente que no passado foi maltratada, torturado ou injustiçada.
Lembrar Lazaro Rodrigues Pinheiro não é uma mercê, mas antes,
prestar justiça a um albicastrense massacrado e injustiçado no passado por fanáticos religiosos.
LÁZARO RODRIGUES PINHEIRO
Nasceu em Castelo Branco a 16.9.1659,
filho do mercador João Nunes Viseu e de sua mulher D. Ana Rodrigues, ambos
cristãos-novos. Em Castelo Branco estudou Gramática (Latim); depois e durante 4
anos, aprendeu com mestres aprovados a arte de boticário; e, examinado nesta
ciência de acordo com o Regimento, foi considerado apto e suficiente pelo que
se lhe passou a respetiva carta régia (Lisboa, 13.1.1680).
Monta botica na terra natal em
Alcains, a 3.1.1697, casa com D. Clara Henriques de Paiva, filha de Francisco
Lopes Morão e D. Leonor de Paiva; e dela houve vários filhos, o primeiro dos
quais nasceu em Castelo Branco em 1698 e teve o nome do avô paterno (João Nunes
Viseu). Ora, embora batizado e freguês habitual da igreja de S.
Miguel, o nosso boticário acaba por apartar-se da Fé Católica e passa a
professar a chamada Lei de Moisés, seguida havia séculos pelos seus antepassados
judeus. No nosso país, tal facto era então objeto de penas (até a de morte),
pelo que Lázaro Rodrigues Pinheiro começa a ter uma vida dupla...
Assim, aparentemente, continua a ser
católico praticante, indo à igreja e confessando-se mas, no seu íntimo, não acreditava
no Mistério da Santíssima Trindade nem tinha Cristo por Deus verdadeiro e como
o Messias prometido; antes, esperava ainda por Ele «e só acreditava no Deus
dos Céus, a quem se encomendava com a oração do Padre Nosso, mas não dizendo
Jesus no fim...» Clandestinamente, comunicava com outras pessoas da
mesma nação, às quais se declarava por judeu; e, na intimidade da sua casa, ele
e a família praticavam os ritos e cerimónias judaicas, guardando os sábados
como se fossem dias santos e jejuando nas festas comemorativas do Dia Grande da
Rainha Ester...
Porém, o destino não lhe permitiria
manter esta situação por muito tempo. Em finais de 1710, alguns familiares são
presos pela Inquisição
e ele, receando ser descoberto através
dos seus testemunhos aconselha-se com Paulo de Figueiredo de Refóios,
comissário do Santo Oficio em Castelo Branco e parte imediatamente para Lisboa,
apresentando-se no palácio dos Estaus, ao Rossio, em
5.2.1711... Inicia-se, assim, o seu processo perante o dito Tribunal, em
cuja Mesa começa a confessar, a 14.2.1711, denunciando parentes e conhecidos
pertencentes a diversos ramos de cristãos-novos: Moratos, Idanhas, Viseus,
Penteados, Aires, Nunes, Sordos, Cunhas, Pavas, etc.
Do inventário feito aos seus bens, a
26.3.1711, consta possuir em Castelo Branco uma vinha no Vale do Romeiro, que
comprara por 150000 réis; mais outro pedaço de vinha, no sítio da Ribeira, que
lhe custara 15 a 16000 réis; e a botica, avaliada em cerca de 50 a 60000
réis. A 11.2.1711, volta à Mesa onde confessa mais culpas, mas o Tribunal
não se dá por satisfeito pois o réu, involuntária ou propositadamente, não
incriminara algumas pessoas já comprometidas noutros processos e com os quais
comungara a sua crença... Por tal motivo, é admoestado e advertido das faltas e
diminuições do seu testemunho, sendo entregue ao juízo ordinário e entrando nos
cárceres secretos da Inquisição, a 18.3.1711.
A 12.6.1711, produz mais confissão, mas, considerada insuficiente e não totalmente verdadeira, é acusado de heresia e apostasia e condenado à prova do tormento 20.6.1711. Este realiza-se 6 dias depois, pelas 9 horas da manhã e perante o inquisidor Manuel da Cunha Pinheiro (pelo ordinário), os deputados Frei Miguel Barbosa e Marfim Monteiro de Azevedo, o notário, médico e cirurgião e outros oficiais da Inquisição.
O notário lê-lhe a sentença e, mais uma vez, insiste em que diga toda a verdade, «para descargo da consciência e salvação da sua alma, pois só assim evitaria os trabalhos e perigos a que iria ser submetido», advertindo-o «com muita caridade, de que se naquela diligência morresse, quebrasse algum membro ou perdesse qualquer sentido, a culpa seria unicamente dele e não dos senhores inquisidores e mais ministros do Santo Ofício, que haviam feito justiça conforme o merecimento da sua causa».
O réu responde com o silêncio a tão
insidiosa e hipócrita argumentação, pelo que é amarrado ao potro e sofre os
primeiros 3 tratos da polé. Desesperado com as dores, grita e clama por
audiência, onde denuncia outros praticantes, entre os quais o Dr. Manuel Mendes
Monforte (tio de sua mulher e médico no Brasil), a própria mulher e o
filho mais velho, apenas com 13 anos. Tudo isto não satisfaz ainda os
inquisidores, sendo levado de novo à tortura e desta vez, submetido a «tratamento»
completo.
Não podendo suportar mais o
sofrimento, pede misericórdia e perdão, «com mostras de arrependimento».
A 30.6.1711, a Mesa do Santo Tribunal revê pela 4ª vez o seu processo e acaba
por condená-lo a cárcere e hábito penitencial e a abjurar das culpas em Auto de
Fé, celebrado no Rossio a 26.7.1711, com a presença d’El-Rei, altas
individualidades e muito povo.
Finalmente, Lázaro Rodrigues Pinheiro
é libertado a 6.8.1711 e regressa a Castelo Branco, retomando o seu trabalho na
botica. Mas, pouco tempo depois, a 16.10.1711, a mulher e o filho mais velho
apresentam-se voluntariamente nos Paços da Inquisição em Lisboa (os Estaus), a
fim de confessarem também as suas culpas, saindo reconciliados pelo mesmo
Tribunal, a 7 e 27.10.1711, respetivamente.
O casal irá ter mais filhos e para
eles o pesadelo terminou... mas não para a sua geração. Ora, processos
semelhantes ao que acabei de descrever foram levantados a muitos cristãos-novos
albicastrenses, em especial no decurso dos séculos XVII e XVlll; e alguns deles
pagariam na fogueira um pesado tributo pelas suas convicções...
PS. Trabalho da autoria de Manuel da Silva Castelo Branco.
O ALBICASTRENSE
Li há pouco tempo um livro chamado "A Inquisição - o reino do medo", de Toby Green. Refere sobretudo a História da inquisição na península ibérica e suas colónias e relata vários processos deste género e de como actuava aquela "máquina de horrores". Entretanto, relativamente a este caso específico do Lázaro Rodrigues Pinheiro... vai ter continuação? É que encontrei o registo original (digitalizado) de um processo posterior sobre um dos personagens deste episódio, ou seja, contrariamente ao que diz Manuel da Silva Castelo Branco, para eles o pesadelo não terminou...
ResponderEliminarManuela.
ResponderEliminarEste trabalho de Manuel da Silva Castelo Branco faz parte de uma edição dos Cadernos de Cultura, edição número 7 dedicada ao tema “Amor e Morte”.
Não sei se mas tarde deu continuidade a este trabalho.
Então, nesse caso, só a título de curiosidade, em 1749 o filho mais velho de Lázaro, João Nunes de Viseu, foi de novo preso e desta vez foi relaxado ao poder secular (executado com o "generoso" pedido do santo ofício para que não fosse vertido sangue...), em 1750. De qualquer forma, esses trabalhos de Manuel da Silva Castelo Branco são deveras interessantes!... E o trabalhão que ele terá tido!
ResponderEliminar