XV -
Drama e Escândalo na Igreja de SantaIsabel (1805).
Por Manuel da Silva Castelo Branco
(Continuação)Assento 43
- D. Leonor Pereira Pessoa, casada com o
sargento-mor José Pessoa Tavares, faleceu com todos os sacramentos e com
testamento de mão comum com seu marido, em o qual deixou se dissessem 2 ofícios
e missas até o sétimo dia; faleceu, digo, em os 20 de outubro de 1805 e foi
sepultada na igreja da Misericórdia, que serve de presente de freguesia, de que
fiz este termo que assinei / O Vig° Manuel Martins Pelejão.
Comentário
No Assento de óbito, acima
transladado, não vislumbramos a menor alusão aos sucessos dramáticos ocorridos
na igreja de Santa Isabel, a quando da inumação dos restos mortais de D. Leonor
26 Pereira da Siva esposa de José Pessoa Tavares, sargento-mor das ordenanças
de Castelo Branco, cavaleiro professo da Ordem de cristo, fidalgo de cota de
armas, negociante de grosso trato e «uma das pessoas mais ricas da província da
Beira». D. Leonor nascera na Covilhã a 18.4.1745 e ali casara, a 11.4.1773, com
seu primo José Pessoa Tavares natural do Fundão, mas residente na urbe
albicastrense, onde veriam pela primeira vez a luz do dia todos os seus filhos.
Ambos descendiam de famílias
cristãs-novas, mas seguiam e praticavam escrupulosamente a religião católica,
vivendo com «muito asseio e luzimento» na sua casa da Rua do Pina e tratando-se
à lei da nobreza com escudeiros, lacaios, seges,
cavalos, etc. Acometida de prolongada e dolorosa enfermidade, D. Leonor passou
os últimos dias da sua vida em estado bastante crítico, quási moribunda... No
decurso deste período, a 17.10.1805, o R. do P. Francisco José Robalo Moutoso
presbítero secular, bacharel em Cânones pela Universidade de Coimbra e
comissário do Santo Ofício, visitara a enferma com o fim de prestar-lhe algumas
consolações espirituais mas o marido opusera-se energicamente a tal propósito,
increpando-o para que não molestasse a mulher... Pouco depois, na madrugada de
20 de Outubro, D. Leonor expirava após lhe haverem sido administrados todos os
sacramentos pelo P. António da Maia Nogueira, cura da Sé.
Nesse mesmo dia, pelas 10
horas da manhã, saiu da Rua do Pina o préstito fúnebre com os seus restos
mortais, nele se incorporando além de familiares, amigos e dependentes, as
figuras mais representativas da cidade e muito povo. Encaminhou-se o cortejo
para a igreja de Santa Isabel, em cujo edifício estava ainda instalada a
primitiva Misericórdia e que então servia de paroquial da freguesia da Sé
Catedral, em obras de restauro…
Ali tiveram lugar as cerimónias litúrgicas
habituais e, depois de encomendada a alma da falecida, lançou-se cal e
vinagre sobre o corpo e lhe puseram por cima uma grande toalha, que a cobria
dos pés à cabeça. Finalmente, fecharam o caixão, cuja chave ficou na posse de
José Tudela de Castilho, fidalgo da Casa Real e a quem tinha sido confiada a
sua guarda... Entretanto, o coveiro Simão Rodrigues Serra procurou o P.
Francisco José Robalo para lhe comunicar as suas apreensões quanto ao
enterramento, pois a colocação da referida toalha sobre o cadáver levantara
certo sussurro dos que nesse ato julgavam descobrir um rito judaico...
O nosso Comissário atuou
imediatamente. Na companhia do coveiro subiu a nave central do templo até
chegar à uma e, invocando o nome do Santo Ofício, perguntou a Manuel de Sousa
Cardoso, escudeiro de José Pessoa Tavares, que mortalha levava a sua senhora.
Perante a resposta de “que ia amortalhada como as mais”, disse que queria examinar
a toalha para ver se era de pano de linho novo e cru.
E, efetivamente, depois de a
apalpar, tirou-a para fora mas verificando a falsidade da denúncia, pois
tratava- -se de uma velha toalha de Bretanha com folhos e rendas e enxovalhada
pelo uso, arremessou-a ao chão. Então, mandou prosseguir a cerimónia e
retirando-se pelo mesmo caminho, foi comentando para a assistência que “esta
gente sempre queria levar roupa de linho...” Todas estas diligências provocaram
um certo borborinho entre as 300 pessoas que enchiam o templo, varrido por um
sopro de drama e escândalo: uns, sentindo-se ofendidos e amargurados com a
atitude do Comissário; outros, procurando conhecer melhor a razão do seu
procedimento; quiçá alguns encantados pela vergonha infligida a uma família
rica e poderosa, por quem nutriam inveja e ressentimento...
Três dias depois deste
incidente, a 23 de Outubro, José Pessoa Tavares apresentava ao juiz de fora de
Castelo Branco um requerimento dirigido a S.A.R., o Príncipe Regente D. João,
expondo o sucedido e pedindo o castigo do P. Francisco José Robalo Moutoso pelo
“ato infame e injurioso com que pretendera denegrir a sua reputação”. Como o
acusado era Familiar do Santo Oficio, todo o processo acabou por correr sob a
alçada do respetivo Conselho Geral. Para apuramento do caso foram ouvidas
diversas testemunhas e vistas as justificações apresentadas por ambas as
partes. Através delas verificou-se, entre outras coisas, o seguinte: -
Atendendo a semelhante aviso do coveiro, o P. Francisco José Robalo já alguns
anos antes fizera despir na igreja uma filha de Estevão Soares Franco, cristão
novo, estando também amortalhada para a sepultarem (28.3.1787). - Ele excedera
os seus deveres e jurisdição, agindo contra as disposições expressas nas leis
de 25.5.1773 e 15.12.1774 (que, confessou não conhecer) e infringiu ainda o
parágrafo 1 do liv. 3, Titº19 do Regimento. Por tudo isto, ao pronunciar a sua
sentença, em 16.5.1806, o referido Tribunal condena o Comissário a suspensão
perpétua do exercício do seu cargo e a 3 anos de degredo para fora de Castelo
Branco.Além do mais, este caso revela-nos como as leis 27 do marquês de
Pombal (acima indicadas e abolindo a distinção entre cristãos velhos e cristãos
novos, a prova da “limpeza de sangue”, etc.) iriam promover a reforma de
mentalidades e constituíram profundo golpe num dos institutos mais sinistros da
nossa História: a Inquisição.
(Continua)
- D. Leonor Pereira Pessoa, casada com o sargento-mor José Pessoa Tavares, faleceu com todos os sacramentos e com testamento de mão comum com seu marido, em o qual deixou se dissessem 2 ofícios e missas até o sétimo dia; faleceu, digo, em os 20 de outubro de 1805 e foi sepultada na igreja da Misericórdia, que serve de presente de freguesia, de que fiz este termo que assinei / O Vig° Manuel Martins Pelejão.
Comentário
No Assento de óbito, acima transladado, não vislumbramos a menor alusão aos sucessos dramáticos ocorridos na igreja de Santa Isabel, a quando da inumação dos restos mortais de D. Leonor 26 Pereira da Siva esposa de José Pessoa Tavares, sargento-mor das ordenanças de Castelo Branco, cavaleiro professo da Ordem de cristo, fidalgo de cota de armas, negociante de grosso trato e «uma das pessoas mais ricas da província da Beira». D. Leonor nascera na Covilhã a 18.4.1745 e ali casara, a 11.4.1773, com seu primo José Pessoa Tavares natural do Fundão, mas residente na urbe albicastrense, onde veriam pela primeira vez a luz do dia todos os seus filhos.
Ambos descendiam de famílias cristãs-novas, mas seguiam e praticavam escrupulosamente a religião católica, vivendo com «muito asseio e luzimento» na sua casa da Rua do Pina e tratando-se à lei da nobreza com escudeiros, lacaios, seges, cavalos, etc. Acometida de prolongada e dolorosa enfermidade, D. Leonor passou os últimos dias da sua vida em estado bastante crítico, quási moribunda... No decurso deste período, a 17.10.1805, o R. do P. Francisco José Robalo Moutoso presbítero secular, bacharel em Cânones pela Universidade de Coimbra e comissário do Santo Ofício, visitara a enferma com o fim de prestar-lhe algumas consolações espirituais mas o marido opusera-se energicamente a tal propósito, increpando-o para que não molestasse a mulher... Pouco depois, na madrugada de 20 de Outubro, D. Leonor expirava após lhe haverem sido administrados todos os sacramentos pelo P. António da Maia Nogueira, cura da Sé.
Nesse mesmo dia, pelas 10 horas da manhã, saiu da Rua do Pina o préstito fúnebre com os seus restos mortais, nele se incorporando além de familiares, amigos e dependentes, as figuras mais representativas da cidade e muito povo. Encaminhou-se o cortejo para a igreja de Santa Isabel, em cujo edifício estava ainda instalada a primitiva Misericórdia e que então servia de paroquial da freguesia da Sé Catedral, em obras de restauro…
Ali tiveram lugar as cerimónias litúrgicas habituais e, depois de encomendada a alma da falecida, lançou-se cal e vinagre sobre o corpo e lhe puseram por cima uma grande toalha, que a cobria dos pés à cabeça. Finalmente, fecharam o caixão, cuja chave ficou na posse de José Tudela de Castilho, fidalgo da Casa Real e a quem tinha sido confiada a sua guarda... Entretanto, o coveiro Simão Rodrigues Serra procurou o P. Francisco José Robalo para lhe comunicar as suas apreensões quanto ao enterramento, pois a colocação da referida toalha sobre o cadáver levantara certo sussurro dos que nesse ato julgavam descobrir um rito judaico...
O nosso Comissário atuou imediatamente. Na companhia do coveiro subiu a nave central do templo até chegar à uma e, invocando o nome do Santo Ofício, perguntou a Manuel de Sousa Cardoso, escudeiro de José Pessoa Tavares, que mortalha levava a sua senhora. Perante a resposta de “que ia amortalhada como as mais”, disse que queria examinar a toalha para ver se era de pano de linho novo e cru.
E, efetivamente, depois de a apalpar, tirou-a para fora mas verificando a falsidade da denúncia, pois tratava- -se de uma velha toalha de Bretanha com folhos e rendas e enxovalhada pelo uso, arremessou-a ao chão. Então, mandou prosseguir a cerimónia e retirando-se pelo mesmo caminho, foi comentando para a assistência que “esta gente sempre queria levar roupa de linho...” Todas estas diligências provocaram um certo borborinho entre as 300 pessoas que enchiam o templo, varrido por um sopro de drama e escândalo: uns, sentindo-se ofendidos e amargurados com a atitude do Comissário; outros, procurando conhecer melhor a razão do seu procedimento; quiçá alguns encantados pela vergonha infligida a uma família rica e poderosa, por quem nutriam inveja e ressentimento...
Três dias depois deste incidente, a 23 de Outubro, José Pessoa Tavares apresentava ao juiz de fora de Castelo Branco um requerimento dirigido a S.A.R., o Príncipe Regente D. João, expondo o sucedido e pedindo o castigo do P. Francisco José Robalo Moutoso pelo “ato infame e injurioso com que pretendera denegrir a sua reputação”. Como o acusado era Familiar do Santo Oficio, todo o processo acabou por correr sob a alçada do respetivo Conselho Geral. Para apuramento do caso foram ouvidas diversas testemunhas e vistas as justificações apresentadas por ambas as partes. Através delas verificou-se, entre outras coisas, o seguinte:
(Continua)
O ALBICASTRENSE
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