sábado, fevereiro 04, 2023

O AMOR E A MORTE... NOS ANTIGOS REGISTOS PAROQUIAIS ALBICASTRENSES – (19)

                         Por Manuel da Silva Castelo Branco 

III Parte - Alguns Episódios da Guerra
dos Sete Anos em Castelo Branco (1762).
Dois Heróis

(Continuação)

“Em 18 de Setembro de 1762, pelas 2 horas da tarde, entraram nesta vila os primeiros castelhanos; e logo vieram entrando 3 Regimentos de Cavalaria e infantaria, que se abarracaram na Devesa desta mesma vila e nos chãos detrás desta igreja de S. Miguel. E, dali a 2 dias, entrou todo o exército (que se julgou seria de 40000 homens pouco mais ou menos), foi passando pela Devesa e saindo para a Pipa, Granja e para cima, para a Líria, aonde estaria 15 dias pouco mais ou menos...”

As últimas forças invasoras saíram da vila a 2 de Novembro, deixando-a empestada e repleta de feridos, destroços e imundície.  Muitos doentes acabariam por sucumbir ao contágio, como aconteceu ao filho do conde de Arcos (Assento 40) e ao médico municipal Dr. José Gomes Nunes (Assento 41). Este médico nasceu em Castelo Branco a 8.11.1722, sendo filho de Sebastião Gomes e D. Catarina Nunes. Frequentou a Universidade de Coimbra, onde se matriculou a 1.10.1741 e pela sua aplicação e qualidades obteve a mercê de partidista de Sua Magestade. Ali tirou o bacharelato em Artes a 3.4.1742 e a licenciatura em Filosofia e Medicina, respectivamente, a 14.3.1748 e 24.5.1751. Seguidamente, estabeleceu-se na terra natal, sendo confirmado num dos partidos de médico municipal com 40000 réis de ordenado, por carta régia de 8.1.1755.
No exercício deste cargo, acompanha dedicadamente os seus doentes durante a ocupação e, sofrendo o contágio da pestilência, dela viria a falecer como um herói, a 17.3.1763. O Assento 38 revela-nos uma outra figura singular, que sacrifica também a vida em prol da sua “terra. Trata-se de António Lopes Carapetoso, nascido em Castelo Branco a 20.10.1719, filho de António Lopes e D. Maria Gonçalves, e casado com D. Maria Gomes Bicho da qual houve geração. Acusado de espia do nosso exército, submete-se dignamente à pena que lhe foi imposta pelo inimigo. Assim, enquanto na Devesa da vila se levanta apressadamente a forca, António Lopes Carapetoso prepara-se para enfrentara morte com as derradeiras armas de que podia dispor para salvação da sua alma...
E na cinzenta madrugada de 25.10.1762, o seu corpo rígido e mudo ficou abalançar na Devesa, não como um exemplo vergonhoso mas qual estandarte cintilante e clamoroso!... Cerca de 4 anos depois, a 10.12.1766, Frei Filipe Gomes de Santiago vigário da igreja de S. Miguel escreve uma relação pormenorizada do que havia presenciado durante a ocupação de Castelo Branco, a qual passamos a transcrever: - ”Em 18 de Setembro de 1762, pelas 2 horas da tarde, entraram nesta vila os primeiros castelhanos; e logo vieram entrando 3 Regimentos de cavalaria e infantaria, que se abarracaram na Devesa desta mesma vila e nos chãos detrás desta igreja de S. Miguel. E, dali a 2 dias, entrou todo o exército (quase julgou seria de 40000 homens pouco mais ou menos), foi passando pela Devesa e saindo para a Pipa, Granja e para cima, para a Líria, aonde estaria 15 dias pouco mais ou menos.
Ocuparam as casas desta vila grande parte dos oficiais; e o general-chefe conde de Aranda o palácio de Sua Excelência (o Paço do Bispo); e nesta minha casa passal da igreja esteve um primo do mesmo conde, o conde de Ricta, ambos de Saragoça do reino de Aragão. Os vivandeiros do exército, que seriam 10000 pessoas, ocuparam com suas bestas todas as desarmar todas as vinhas, latadas e portas, queimando muita madeira delas e das casas (normais das fazendas não fizeram agora grande dano). E ocuparam com os doentes, que eram muitos e depois da saída cresceram em maior número, os conventos do Santo Agostinho dos religiosos Gracianos, de Santo António dos religiosos Capuchos, igreja e hospitais da Misericórdia, casas do capitão-mor e outras.
Ocuparam a igreja de S. João com a artilharia e munições dos franceses. S. Pedro, S. Marcos, Espírito Santo, capela da Porta da vila e outras muitas casas se ocuparam com trigos e cevadas, que conduziram em grande numero; e tanto que duas vezes fui notificado para mudar o Santíssimo Sacramento para outra parte, para poderem encher a igreja do muito pão que tinham na Devesa sem haver a onde o recolhessem.
Porém não tiveram efeito as notificações, porque na saída do exército permitiu a Senhora da Conceição e S. Miguel ficasse Governador desta vila um coronel irlandês chamado D. José, cuja mulher disseram era parente de S. Francisco de Sales, e este ficou nestas minhas casas, (aonde eu com mais dois irmãos me conservei), e ele foi o padrinho que tive para não despejar a igreja, dando conta ao conde de Aranda que estava nas Sarzedas.
E concorreu também ser a igreja a casa da oração, aonde se diziam muitas missas tanto pelos R. dos Padres que ficaram como por mais de 30 capelães do exército, cuja fidalguia e soldadesca concorria ela em todo dia , e ser a igreja muito estimada e louvada por todos pois se achava muito asseada e armada com a sua armação de tafetá encarnado, da mesma forma que tinha servido na festa da Senhora  o concurso nada faltou, de sorte que não seria preciso esconder algumas peças de prata pelas cimalhas da tribuna.
As capelas do Senhor da Piedade e da Senhora da Piedade, em cujo alpendre fizeram seu paredão de pedra, ficaram servindo de Corpos de Guarda; e o mesmo a igreja de Santa Maria do Castelo, aonde parece chegaram a meter alguns cavalos e encheram de palha para dormirem os que nela se recolhiam, com mágoa do seu vigário que também ficou nesta vila, Frei Martinho Gomes Aires, também natural desta vila. E ou destas imundícies ou de doentes ou de pão todas as igrejas foram cheias. Só pela graça de Deus e da Senhora da Conceição, a igreja de S. Miguel não ficou apestada como todas as mais, antes se conservou com muito asseio e sempre as chaves estiveram em poder do seu tesoureiro, o P. Manuel Vaz Touro do Amaral, que não me ajudou pouco na administração do Sagrado Viático e Extrema Unção, cujo trabalho era continuado desde manhã até à noite; e, não sendo tanta a caridade dos capelães em confessarem os doentes, certamente morriam pelos muitos que vinham de Vila Velha de Ródão e Sarzedas, às carradas; parece-me não chegariam os mortos que se sepultaram a 150, de que não fiz relação pelo muito trabalho e aflição que se padece em semelhantes tempos, que só quem o experimentar o pode vir a conhecer.
No fim do pouco efeito que acharam os castelhanos em Vila Velha, Sarzedas e Alvito, recolheram todos a esta vila. Como era no mês de Outubro, foi continuada a chuva e muito frio, de sorte que obrigou a recolherem-se a maior parte dentro das casas desta vila e, pela muita chuva e frio, entraram acarretar lenha de oliveira, cortando muitas nas vizinhanças e subúrbios da vila.
 E neste espaço, que seria de 15 dias, é que fizeram o maior destroço e perdas. E no dia 2 de Novembro saiu o resto de todo o exército, tendo levantado toda a grande maioria do trem, peão e artilharia nos dias antecedentes, fazendo o seu caminho para Alcântara com bastante medo e tendo tentado passar o Tejo em Malpica para Ferreira, o que não puderam à força da boa diligência conseguir. Não foi pequeno susto que causaram em aqueles que ficaram nesta vila, receando ser levados para Castela como foram muitos destas vizinhanças, eclesiásticos e seculares, de que muito poucos voltaram a este reino.
A maior parte da gente desta vila se retiraram para as terras da Serra, aonde não padeceram pouco, sem que porém se possa comparar aos sustos e apertos do coração que padecemos, os que ficámos, que é indizível. Saíndo o exército, ficou a vila quási apestada, que não morreu pouca gente; e a não vir o conde dos Arcos, que com grande diligência mandou enterrar as muitas bestas que havia mortas e já corruptas por toda a vizinhança da vila, além do despejo que se fez das muitas imundícies que havia nas casas e ruas, certamente seria ainda maior a mortandade.
E, nem assim pôde escapar da morte um filho do mesmo conde e, dos dois médicos, um ainda escapou como por milagre e o outro que era meu primo, o Dr. José Gomes Nunes,com efeito morreu no contágio que se seguiu à saída do inimigo. Não especifico aqui as muitas lidas e apertos que se padeceram, de que não coube pequena parte ao pároco desta igreja, porque o que for quando suceda outra (o que Deus pela sua Misericórdia não permita)então se saberá ...

 (Continua) 
                                                  O ALBICASTRENSE


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