terça-feira, maio 15, 2018

DO CANHENHO DE UM VELHO – (II)

 
Nas minhas peregrinações pelos antigos jornais da nossa cidade, tenho encontrado crónicas escritas por Jorge Seabra e António Rodrigues Cardoso que são autênticas preciosidades. 
António Rodrigues Cardoso iniciou em 1930 no jornal “A ERA NOVA” uma série de crónicas a que deu o nome: “Do Canhenho de um Velho”. 
Crónicas em que retrata albicastrenses que nos são desconhecidos e nos dá conta de locais da nossa cidade entretanto desaparecidos. 
Em homenagem a António Rodrigues Cardoso e aos albicastrenses que ele nos dá a conhecer, aqui mais uma das suas crónicas.
LAGARTO 
"O  ABAFADOR"
Rafael José da Cunha nasceu em Castelo Branco em 1792, e desde muito novo colaborou com o pai na administração da grande casa agrícola da família.
Para além da administração da quinta familiar de Vale de Figueiras, explorava também a Quinta dos Álamos na Golegã entre outras.
Quando vinha a Castelo Branco, apesar de ter casa na Praça Velha, (hoje Luís de Camões), tinha por hábito ficar hospedado na casa do seu amigo Dr. Francisco Tavares de Almeida Proença.
Numa das vezes que veio a Castelo Branco, sentindo-se bastante doente, abriu-se com o seu velho amigo nos termo que podem ler a segui e conforme vem no referido artigo:
- Amigo Francisco, eu sinto-me muito doente e está-me a parecer que desta não escapo. Quero, porém morrer naturalmente e não quero que me matem. Como sabe, eu sou judeu de nascimento, e entre a família judaica há o costume tradicional, mas bárbaro, de abafar os doentes, quando os julgam em estado desesperado.
Peço-te que empregues todos os meios possíveis para evitar que isso me venha a acontecer. O abafador é o Lagarto, que muito bem conheces. Evita que ele entre neste quarto, ou sou um homem morto. 
O Dr. Tavares Proença ouviu e respondeu: 
- Sossega. Não estás tão doente como julgas e por isso espero que dentro em pouco estejas restabelecido. De morrer, porém, abafado pelo Lagarto tenho eu a certeza de que te hei-de livrar. Respondo por isso.
O Dr. Tavares Proença chamou de imediato dois criados decididos e de inteira confiança, deu a cada uma pistola carregada e disse-lhes: 
- Vocês conhecem o Lagarto. Se ele aparecer e tentar entrar neste quarto, descarregam sobre ele essas pistolas, atirando-lhe como um cão danado, que eu respondo pelas consequências.
Reparem bem no que disse, tomem nota de que, se ele aí chegar a entrar, alguém lhes fará o que vocês por descuido ou cobardia não lhe fizeram a ele.
Rafael José da Cunha curou-se e voltou a sua Quinta da Broa; mas o Lagarto tentou entrar-lhe no quarto.
Quando na cidade correu que ele estava perdido, ele argumentava, que se daquele vez não praticado a sua profissão de abafador, foi porque o fizeram recuar e procurar a correr a porta da rua as duas pistolas que viu apontadas para ele com estas palavras pouco tranquilizadoras: 
- Rua seu cão do diabo! Se dá mais um passo, fica aí estendido.

UM POUCO DE HISTÓRIA
Em algumas cidades havia o chamado "abafador", que deveria ajudar alguém gravemente doente a ir embora antes que um médico viesse examiná-lo e descobrisse que o enfermo é judeu. O abafador, a portas fechadas, sufocava o doente, proferindo calmamente a frase "Vamos, meu filho, Nosso Senhor está esperando!".
Feito o trabalho, o corpo era recomposto e o abafador saía para dar a notícia aos parentes: "ele se foi como um passarinho..."

Ps. A crónica de António Rodrigues Cardoso não está aqui na sua totalidade. Recolha de dados: Antigo Jornal “Era Nova” e “Castelo Branco, Um Século na Vida da Cidade 1830 – 1930”, da autoria de Manuel A. de Morais Martins.  
O Albicastrense

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