sexta-feira, julho 30, 2010

DO CANHENHO DE UM VELHO


Nas minhas peregrinações pelos antigos jornais da nossa cidade, tenho encontrado crónicas escritas por Jorge Seabra e António Rodrigues Cardoso, que são autênticas preciosidades. António Rodrigues Cardoso iniciou em 1930 no jornal “A ERA NOVA” uma série de crónicas a que deu o nome de: “Do Canhenho de um Velho”. Crónicas em que retrata albicastrenses que nos são desconhecidos, e nos dá conta de locais da nossa cidade entretanto desaparecidos. Em homenagem a António Rodrigues Cardoso e aos albicastrenses que ele nos dá a conhecer nos seus registos de lembranças, irei aqui publicar algumas dessas crónicas.
“O PINA”

O Pina (Joaquim Esteves de Pina era a sua graça) não passava de um simples carteiro, e contudo não havia por estes sítios quem o excedesse em popularidade e em prendas. Era um artista, e a sua arte revelava-se principalmente no fabrico de lanternas para a procissão das ditas e para a do enterro do Senhor. Lanternas como as que ele fazia, tão bonitas, tão perfeitas, não tornaram por cá a aparecer depois que o Senhor o levou. Eram inconfundíveis. Desde a porta da igreja da Graça até ao largo de S. João, no sábado de Passos ou na sexta feira de Paixão, à noite, via a gente milhares de lanternas dos mais variados feitios; mas logo que dava com os olhos numa que lhe tivesse saído das mãos, dizia sem sombra de hesitação. Aquela é obra do Pina.
Era um cozinheiro de fama; e, como a esta prenda juntava a de saber guardar segredo, a “jeunesse dorme” do seu tempo recorria invariavelmente a ele para as ceias de pandega, que então eram frequentes, e podiam todos estar seguros de que o que nelas se passava ninguém o sabia pelo Pina. Era um criador de cenário como nunca mais houve por cá. Também ninguém como ele era capaz de ensinar um melro a assobiar a Maria cachucha, a mais afamada peça do seu reportório musical. Era um bebedor de respeito. Embriagava-se normalmente trezentas e sessenta e cinco vezes nos anos comuns e trezentos e sessenta e seis nos anos bissextos, mas sempre à noite, o que o não impedia de desempenhar com toda e regularidade e correcção o seu serviço de distribuidor postal, serviço que no seu tempo só era feito de dia. Tinha um génio alegre e saia-se às vezes com partidas que faziam rir a bandeiras desgarradas. Salvemos algumas para a historia. Certa noite, uns tantos rapazes de situação social de destaque, festejaram qualquer acontecimento, que pouco importa qual fosse, com uma ceia de rapazes. O Pina, como acontecia quase sempre, foi escolhido para cozinheiro. Comeu-se bem, e, bebeu-se melhor e, quando mal se precataram, estavam todos (incluindo o Pina), no estado em que ficou Noé depois de beber com certa abundância o liquido extraído das uvas da primeira vinha que plantou. E para que lhe havia de dar? Como era noite de verão, deu-lhe para de despojarem de todo o fato e andarem a passear as ruas nusinhos de todo. Tudo correu sem novidades até ao romper da manhã, porque nesses tempos ainda por cá não havia policia, mas a essa hora começaram a passar homens para o trabalho e mulheres para a fonte da Mina, deram com aquele bando de malucos completamente vestidos de nu, o caso fez escândalo.
Passadas poucas horas, foi informado do que se passava o administrador do concelho, que era Henrique Caldeira Pedroso e este quis desagravar a moral ofendida apanhando nas malhas do ”Ano do Nascimento” pelo menos um dos criminosos. Não se atrevendo com nenhum dos rapazes, que tinham a defende-los os nomes que usavam, quis vencer a dificuldade chamando a contas o Pina. Fá-lo comparecer na administração. De sobrecenho carregado, pregou-lhe um sermão de moral, colocou-lhe diante dos olhos a indecência da sua nudez por essas ruas fora em companhia dos senhores Fulano, Beltrano e no fim perguntou-lhe o que tinha a dizer em sua defesa. O Pina, com ares de quem não entendia o que lhe estiveram dizer, respondeu:
- O que tenho a dizer é que não percebo nada disse. Então eu, um pobre carteiro, havia de acompanhar com esses senhores que V. Ex. nomeou? Henrique Caldeira atalhou:
- Não esteja a fazer-se pacóvio, que eu estou bem informado. Tenho muitas testemunhas de vista e vou tratar de o meter na cadeia para exemplo
- Desculpe V. Ex. mas faça favor de me dizer: Como é que disseram a V. Ex. ?
- Disseram-me que Fulano, Sicrano e Beltrano andaram por essas ruas nus até ser já dia claro e com eles andava no mesmo estado o Pina.
- Ah agora já entendo! Se disseram a V. Ex. Só o Pina, é claro que não era eu. Devia ser uma pessoa da categoria desses senhores e essa pessoa só poderá ser o sr. Pedro de Pina.
O administrador do concelho deu-lhe uma gargalhada e, como já não era capaz de manter-se serio em vista da lembrança do Pina, mandou-o em paz. É que Pedro de Pina era um homem já de idade madura, muito ponderado, e muito temente a Deus, tão capaz de entrar numa pandega como subir até à lua, que entrava para casa com as galinhas e não saia dela até à hora da missa q que nunca faltava. Deixou em testamento os seus avultados bens aos padres jesuítas. Cera noite, o medico Dr. José António Morão voltava de visitar um doente acompanhado de um criado. Vinha pela rua então chamada do Bispo, hoje chamada do Arco. A noite estava chuvosa e fria. Ao chegar ao pé do arco, viu estendida na valeta um homem. Aproximou-se, conheceu que era o Pina caído de borracho e, coitado dele, porque, se ali o deixasse, a agua que começava a correr pela valeta já o cobria por complete, quis levanta-lo e fazê-lo seguir para casa. Impossível. O Pina não se aguentava nas pernas. Então, com a ajuda do criado, pegou nele, estendeu-o num degrau que havia debaixo do arco (ainda lá está), dobrou uma ponte do capote, que o Pina usava de noite, para lhe servir de travesseiro e cobriu-o com o resto para o proteger contra o frio. O Pina deixou fazer tudo aquilo sem dizer uma palavra. No fim, quando o dr. Morão se disponha a seguir o seu caminho, disse-lhe o estas palavras de agradecimento:
- Assim te cubra o Zé da Manta!... (O Zé da Manta era o coveiro)
Os canários do Pina tinham fama e esta fama era merecida. Para criação escolhia sempre bons exemplares, do melhor que havia, e tratava das simpáticas avesinhas com uns cuidados de que só ele era capaz. Dai vinha que criava canários como ninguém, e que quem pretendia adquirir um exemplar garantido destas avesinhas, era à porta do Pina que ia bater, sendo raro aquele que não ficava inteiramente satisfeito. Certo dia bateu-lhe à porta um empregado publico, para lhe comprar um canário. Entrou, viu, ouviu encantado com o canto de um, separado dos restantes, numa gaiola à parte. Achou-lhe, porem, um defeito: era de plumagem escura, e o que ele desejava era um canário amarelo, gemadinho.
- Mal empregado! Dizia o nosso homem. Se fosse gemadinho, comprava-o pelo que fosse. Canta que é mesmo um enlevo. O Pina atalhou logo:
- Tenho o que deseja. Tenho um canário gemado, amarelinho, que parece mesmo oiro, que conta como este ou melhor ainda. Emprestei-o a um amigo para ver se um canário que lá tem aprendia a cantar com o meu; mas amanhã, se quiser, cá o tem. Previno-o, porém de que lho não vendo por menos de três mil réis. Vale-os a olhos fechados.
Era puxado o preço, porque naqueles tempos três mil réis eram dinheiro, mas o comprador não regatou e ficou combinado que no dia seguinte viria pelo canário. Á hora combinada lá estava, acompanhado de Pedro Rondão, que era portador da gaiola, uma gaiola bem bonita, escolhida a preceito na loja do João dos Santos, que vendia tudo desde as cartas de alfinetes até à lã de Cágado. O canário lá estava, gemadinho que era um gosto vê-lo, e cantava que era uma perfeição. Fez-se logo a transacção: canário para a gaiola do comprador, três mil réis para a mão do Pina e imediata saída do comprador todo satisfeito com a preciosidade que adquirira. Chegado a casa, o novo dono do canário encheu-lhe o comedouro da alpista, colocou uma folha de alface muito tenrinha, deitou-lhe agua fresca no bebedouro, pôs a gaiola no lugar que lhe estava destinada e ficou a namorar o seu lindo passarinho. Passados poucos minutas, o canário meteu-se dentro do bebedouro, começou a banhar-se e o seu novo dono ficou passado, quando viu que, à medida que se ia banhando, lhe iam aparecendo umas penas escuras, que foram alastrando e crescendo em numero até ao ponto de ficar escuro de todo. Era o canário que vira na véspera em casa do Pina! Este tinha-o pintado de amarelo! Furioso, saiu em busca do Pina. Encontrou-o na Praça Camões com a bolsa do oficio para ir recolher a correspondência das caixas postais e começou logo a chamar-lhe nomes feios, uma verdadeira ladainha de injurias. O Pina fingiu-se de muito espantado e perguntou-lhe que despropósitos eram aqueles.
- Então você, seu malandro, replicou o furioso comprador, intrujou-me com o canário que me vendeu, leva-me três mil réis por um pássaro escuro que pintou de amarelo e ainda me pergunta que despropósitos são estes! Da-me vontade de o esganar.
- Ai pobre do passarinho! Respondeu com ares de compunção o Pina.
O pobrezinho viu-se separado dos companheiros, convenceu-se de que os torna a ver, e vestiu-se de luto. Foi o que foi, pode crer. O homem embatocou e o Pina foi ver a correspondência das caixas. Mais tarde ria-se a contar o caso e comentava:
- O alma de cântaro nunca mais me falou, mas a verdade é que quem foi roubado fui eu! A pintura do canário tinha ficado uma verdadeira obra de arte, e as obras de arte não se pagam com três mil réis.
Uma noite na taberna do Lêndeas, que ficava onde hoje está o edifício do Banco Ultramarino, entrou em disputa com um sargento de Cavalaria. Palavra puxa palavra, chegaram às do cabo. O Lêndeas, que era um homem cordato e um taberneiro tão honrado que nunca constou que tivesse baptizado o vinho que vendia aos fregueses, interveio. Não queria desordens em sua casa. De mais a mais a hora regulamentar tinha passado e, apesar de a porta estar fechada, podia haver quem informasse o administrador do concelho de que estava a taberna a funcionar fora de horas, e o administrador não era de graças. O Pina dirigiu-se logo para a porta e, passando pela frente do sargento, atirou-lhe esta carta:
- Fique sabendo, seu barbas de chibo, que não tenho medo. Se quer alguma coisa, venha dai para trás da Sé. Era um desafio em forma, Nesse tempo os “rapazes da rua”, quando queriam bulhar, desafiavam-se “para trás da Sé
O sargento aceitou o repto e segui o Pina. À cautela, seguiram-nos à distancia dois outros fregueses do Lêndeas, dispostos a intervir, no caso de a bulha passar a mais. Chagados atrás da Sé, o Pina começou a despir o casaco. Depois despiu o colete e disponha-se a despir as calças, quando o sargento, de sobrecenho carregado, lhe disparou esta pergunta:
- Então que palhaçada é esta?
- Palhaçada? Respondeu logo o Pina. Estou a fazer o que devo, dispo-me. E você se quer bulhar comigo, dispa-se também, que o fato não tem culpa das asneiras que a gente faz.
É desnecessário dizer que o sargento, em vista de uma saída destas, se sentiu desarmado, e a bulha ficou adiada para melhor oportunidade que aliás nunca chegou. Já agora, mais uma do Pina para fecho da crónica. Numa noite de inverno a caraspana do Pina foi das de caixão à cova. Com as pernas a falharem-lhe foi dar consigo no Passeio Publico. Sentindo vontade de deitar-se, fez cama em cima do parapeito do Passeio, do lado que dá para o largo que hoje se chama Campo da Pátria. Adormeceu. A dormir voltou-se e caiu para o largo, da altura de alguns metros. Presenciaram a queda dois soldados que tinham dispensa de recolher e mais ninguém, porque àquela hora, numa noite fria e, convencidos que ele estava morto, foram dar parte do acorrido ao quartel de Cavalaria 8, que ficava em frente. Estava de serviço o tenente Filipe Malaquias, que era amicíssimo do Pina, e correu logo para o local do sinistro. Com ele correu também o sargento Carvalho, que eu conheci muito bem e morreu capitão. Chegados ali, pareceu-lhes que o Pina, se não estava morto, estava mais para a morte do que para a vida, e por isso mandaram logo buscar uma maca, meteram-no dentro e ei-los com o morta às costas. Hesitaram se haviam de conduzi-lo ao hospital ou a casa, mas optaram pela casa. Morava o Pina na Rua Nova, uma rua empinadissima, e por isso chegaram à porta da casa a suar apesar do frio da noite. Puseram a maca no chão e bateram à porta. Acudiu a filha, única pessoa com quem vivia depois da morte da mulher e informada de que era o pai que ia na maca, começou a chorar, a lamentar-se em altos gritos: que era uma desgraçada, que ficava só no mundo, que antes Deus a levasse a ela que não fazia falta a ninguém, etc. Quando as lamentações eram mais vivas, levanta-se a cortina de um dos lados da maca, aparece a cabeça do Pina e disse-lhe isto:
- Não chores, rapariga, que não há razão para isso!... Eu ainda não morri nem morro desta. Cala-te e vai ver se arranjas um molho de palha para dar a estas bestas......
PS. O texto está escrito tal como foi publicado em 1930, no jornal 
A ERA NOVA
O Albicastrense


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