Nas minhas
peregrinações pelos antigos jornais da nossa cidade, tenho encontrado crónicas
escritas por Jorge Seabra e António Rodrigues Cardoso, que são autênticas
preciosidades. António Rodrigues Cardoso iniciou
em 1930 no jornal “A ERA NOVA” uma
série de crónicas a que deu o nome de: “Do
Canhenho de um Velho”. Crónicas em que retrata albicastrenses
que nos são desconhecidos, e nos dá conta de locais da nossa cidade entretanto
desaparecidos. Em homenagem a António Rodrigues Cardoso e aos albicastrenses
que ele nos dá a conhecer nos seus registos de lembranças, irei aqui publicar
algumas dessas crónicas.
“O PINA”
O Pina (Joaquim Esteves de Pina era a sua graça) não
passava de um simples carteiro, e contudo não havia por estes sítios quem o
excedesse em popularidade e em prendas. Era um artista, e a sua arte
revelava-se principalmente no fabrico de lanternas para a procissão das ditas e
para a do enterro do Senhor. Lanternas como as que ele fazia, tão bonitas, tão
perfeitas, não tornaram por cá a aparecer depois que o Senhor o levou. Eram
inconfundíveis. Desde a porta da igreja da Graça até ao largo de S. João,
no sábado de Passos ou na sexta feira de Paixão, à noite, via a gente milhares
de lanternas dos mais variados feitios; mas logo que dava com os olhos numa que
lhe tivesse saído das mãos, dizia sem sombra de hesitação. Aquela é obra do
Pina.
Era um cozinheiro de
fama; e, como a esta prenda juntava a de saber guardar segredo, a “jeunesse dorme” do seu tempo recorria
invariavelmente a ele para as ceias de pandega, que então eram frequentes, e
podiam todos estar seguros de que o que nelas se passava ninguém o sabia pelo
Pina. Era um criador de cenário como nunca mais houve por cá. Também
ninguém como ele era capaz de ensinar um melro a assobiar a Maria cachucha, a
mais afamada peça do seu reportório musical. Era um bebedor de respeito.
Embriagava-se normalmente trezentas e sessenta e cinco vezes nos anos comuns e
trezentos e sessenta e seis nos anos bissextos, mas sempre à noite, o que o não
impedia de desempenhar com toda e regularidade e correcção o seu serviço de
distribuidor postal, serviço que no seu tempo só era feito de dia. Tinha um
génio alegre e saia-se às vezes com partidas que faziam rir a bandeiras
desgarradas. Salvemos algumas para a historia. Certa noite, uns tantos
rapazes de situação social de destaque, festejaram qualquer acontecimento, que
pouco importa qual fosse, com uma ceia de rapazes. O Pina, como acontecia quase
sempre, foi escolhido para cozinheiro. Comeu-se bem, e, bebeu-se melhor e,
quando mal se precataram, estavam todos (incluindo
o Pina), no estado em que ficou Noé depois de beber com certa
abundância o liquido extraído das uvas da primeira vinha que plantou. E
para que lhe havia de dar? Como era noite de verão, deu-lhe para de despojarem
de todo o fato e andarem a passear as ruas nusinhos de todo. Tudo correu sem
novidades até ao romper da manhã, porque nesses tempos ainda por cá não havia
policia, mas a essa hora começaram a passar homens para o trabalho e mulheres
para a fonte da Mina, deram com aquele bando de malucos completamente vestidos
de nu, o caso fez escândalo.
Passadas poucas horas,
foi informado do que se passava o administrador do concelho, que era Henrique
Caldeira Pedroso e este quis desagravar a moral ofendida apanhando nas malhas
do ”Ano do Nascimento” pelo menos um
dos criminosos. Não se atrevendo com nenhum dos rapazes, que tinham a
defende-los os nomes que usavam, quis vencer a dificuldade chamando a contas o
Pina. Fá-lo comparecer na administração. De sobrecenho carregado, pregou-lhe um
sermão de moral, colocou-lhe diante dos olhos a indecência da sua nudez por
essas ruas fora em companhia dos senhores Fulano, Beltrano e no fim
perguntou-lhe o que tinha a dizer em sua defesa. O Pina, com ares de quem
não entendia o que lhe estiveram dizer, respondeu:
- O que tenho a dizer
é que não percebo nada disse. Então eu, um pobre carteiro, havia de acompanhar
com esses senhores que V. Ex. nomeou? Henrique Caldeira atalhou:
- Não esteja a
fazer-se pacóvio, que eu estou bem informado. Tenho muitas testemunhas de vista
e vou tratar de o meter na cadeia para exemplo
- Desculpe V. Ex. mas
faça favor de me dizer: Como é que disseram a V. Ex. ?
- Disseram-me que
Fulano, Sicrano e Beltrano andaram por essas ruas nus até ser já dia claro e
com eles andava no mesmo estado o Pina.
- Ah agora já entendo!
Se disseram a V. Ex. Só o Pina, é claro que não era eu. Devia ser uma pessoa da
categoria desses senhores e essa pessoa só poderá ser o sr. Pedro de Pina.
O administrador do
concelho deu-lhe uma gargalhada e, como já não era capaz de manter-se serio em
vista da lembrança do Pina, mandou-o em paz. É que Pedro de Pina era um
homem já de idade madura, muito ponderado, e muito temente a Deus, tão capaz de
entrar numa pandega como subir até à lua, que entrava para casa com as galinhas
e não saia dela até à hora da missa q que nunca faltava. Deixou em testamento
os seus avultados bens aos padres jesuítas. Cera noite, o medico Dr. José
António Morão voltava de visitar um doente acompanhado de um criado. Vinha pela
rua então chamada do Bispo, hoje chamada do Arco. A noite estava chuvosa e
fria. Ao chegar ao pé do arco, viu estendida na valeta um homem. Aproximou-se,
conheceu que era o Pina caído de borracho e, coitado dele, porque, se ali o
deixasse, a agua que começava a correr pela valeta já o cobria por complete,
quis levanta-lo e fazê-lo seguir para casa. Impossível. O Pina não se
aguentava nas pernas. Então, com a ajuda do criado, pegou nele, estendeu-o num
degrau que havia debaixo do arco (ainda lá está),
dobrou uma ponte do capote, que o Pina usava de noite, para lhe servir de
travesseiro e cobriu-o com o resto para o proteger contra o frio. O Pina deixou
fazer tudo aquilo sem dizer uma palavra. No fim, quando o dr. Morão se
disponha a seguir o seu caminho, disse-lhe o estas palavras de agradecimento:
- Assim te cubra o Zé
da Manta!... (O Zé da Manta era o coveiro)
Os canários do Pina
tinham fama e esta fama era merecida. Para criação escolhia sempre bons
exemplares, do melhor que havia, e tratava das simpáticas avesinhas com uns
cuidados de que só ele era capaz. Dai vinha que criava canários como ninguém, e
que quem pretendia adquirir um exemplar garantido destas avesinhas, era à porta
do Pina que ia bater, sendo raro aquele que não ficava inteiramente satisfeito. Certo
dia bateu-lhe à porta um empregado publico, para lhe comprar um canário.
Entrou, viu, ouviu encantado com o canto de um, separado dos restantes, numa
gaiola à parte. Achou-lhe, porem, um defeito: era de plumagem escura, e o que
ele desejava era um canário amarelo, gemadinho.
- Mal empregado! Dizia
o nosso homem. Se fosse gemadinho, comprava-o pelo que fosse. Canta que é mesmo
um enlevo. O Pina atalhou logo:
- Tenho o que deseja.
Tenho um canário gemado, amarelinho, que parece mesmo oiro, que conta como este
ou melhor ainda. Emprestei-o a um amigo para ver se um canário que lá tem
aprendia a cantar com o meu; mas amanhã, se quiser, cá o tem. Previno-o, porém
de que lho não vendo por menos de três mil réis. Vale-os a olhos fechados.
Era puxado o preço,
porque naqueles tempos três mil réis eram dinheiro, mas o comprador não regatou
e ficou combinado que no dia seguinte viria pelo canário. Á hora combinada
lá estava, acompanhado de Pedro Rondão, que era portador da gaiola, uma gaiola
bem bonita, escolhida a preceito na loja do João dos Santos, que vendia tudo
desde as cartas de alfinetes até à lã de Cágado. O canário lá estava, gemadinho
que era um gosto vê-lo, e cantava que era uma perfeição. Fez-se logo a
transacção: canário para a gaiola do comprador, três mil réis para a mão do
Pina e imediata saída do comprador todo satisfeito com a preciosidade que adquirira. Chegado
a casa, o novo dono do canário encheu-lhe o comedouro da alpista, colocou uma
folha de alface muito tenrinha, deitou-lhe agua fresca no bebedouro, pôs a
gaiola no lugar que lhe estava destinada e ficou a namorar o seu lindo
passarinho. Passados poucos minutas, o canário meteu-se dentro do
bebedouro, começou a banhar-se e o seu novo dono ficou passado, quando viu que,
à medida que se ia banhando, lhe iam aparecendo umas penas escuras, que foram
alastrando e crescendo em numero até ao ponto de ficar escuro de todo. Era
o canário que vira na véspera em casa do Pina! Este tinha-o pintado de amarelo!
Furioso, saiu em busca do Pina. Encontrou-o na Praça Camões com a bolsa do
oficio para ir recolher a correspondência das caixas postais e começou logo a
chamar-lhe nomes feios, uma verdadeira ladainha de injurias. O Pina
fingiu-se de muito espantado e perguntou-lhe que despropósitos eram aqueles.
- Então você, seu
malandro, replicou o furioso comprador, intrujou-me com o canário que me
vendeu, leva-me três mil réis por um pássaro escuro que pintou de amarelo e
ainda me pergunta que despropósitos são estes! Da-me vontade de o esganar.
- Ai pobre do
passarinho! Respondeu com ares de compunção o Pina.
O pobrezinho viu-se
separado dos companheiros, convenceu-se de que os torna a ver, e vestiu-se de
luto. Foi o que foi, pode crer. O homem embatocou e o Pina foi ver a
correspondência das caixas. Mais tarde ria-se a contar o caso e comentava:
- O alma de cântaro
nunca mais me falou, mas a verdade é que quem foi roubado fui eu! A pintura do
canário tinha ficado uma verdadeira obra de arte, e as obras de arte não se
pagam com três mil réis.
Uma noite na taberna
do Lêndeas, que ficava onde hoje está o edifício do Banco Ultramarino, entrou
em disputa com um sargento de Cavalaria. Palavra puxa palavra, chegaram às do
cabo. O Lêndeas, que era um homem cordato e um taberneiro tão honrado que
nunca constou que tivesse baptizado o vinho que vendia aos fregueses,
interveio. Não queria desordens em sua casa. De mais a mais a hora regulamentar
tinha passado e, apesar de a porta estar fechada, podia haver quem informasse o
administrador do concelho de que estava a taberna a funcionar fora de horas, e
o administrador não era de graças. O Pina dirigiu-se logo para a porta e,
passando pela frente do sargento, atirou-lhe esta carta:
- Fique sabendo, seu
barbas de chibo, que não tenho medo. Se quer alguma coisa, venha dai para trás
da Sé. Era um desafio em forma, Nesse tempo os “rapazes
da rua”, quando queriam bulhar, desafiavam-se “para trás da Sé”
O sargento aceitou o
repto e segui o Pina. À cautela, seguiram-nos à distancia dois outros fregueses
do Lêndeas, dispostos a intervir, no caso de a bulha passar a mais. Chagados
atrás da Sé, o Pina começou a despir o casaco. Depois despiu o colete e
disponha-se a despir as calças, quando o sargento, de sobrecenho carregado, lhe
disparou esta pergunta:
- Então que palhaçada
é esta?
- Palhaçada? Respondeu
logo o Pina. Estou a fazer o que devo, dispo-me. E você se quer bulhar comigo,
dispa-se também, que o fato não tem culpa das asneiras que a gente faz.
É desnecessário dizer
que o sargento, em vista de uma saída destas, se sentiu desarmado, e a bulha
ficou adiada para melhor oportunidade que aliás nunca chegou. Já agora, mais
uma do Pina para fecho da crónica. Numa noite de inverno a caraspana do Pina
foi das de caixão à cova. Com as pernas a falharem-lhe foi dar consigo no
Passeio Publico. Sentindo vontade de deitar-se, fez cama em cima do parapeito
do Passeio, do lado que dá para o largo que hoje se chama Campo da Pátria.
Adormeceu. A dormir voltou-se e caiu para o largo, da altura de alguns metros. Presenciaram
a queda dois soldados que tinham dispensa de recolher e mais ninguém, porque
àquela hora, numa noite fria e, convencidos que ele estava morto, foram dar
parte do acorrido ao quartel de Cavalaria 8, que ficava em frente. Estava de
serviço o tenente Filipe Malaquias, que era amicíssimo do Pina, e correu logo
para o local do sinistro. Com ele correu também o sargento Carvalho, que eu
conheci muito bem e morreu capitão. Chegados ali, pareceu-lhes que o Pina, se
não estava morto, estava mais para a morte do que para a vida, e por isso
mandaram logo buscar uma maca, meteram-no dentro e ei-los com o morta às
costas. Hesitaram se haviam de conduzi-lo ao hospital ou a casa, mas
optaram pela casa. Morava o Pina na Rua Nova, uma rua empinadissima, e por isso
chegaram à porta da casa a suar apesar do frio da noite. Puseram a maca no chão
e bateram à porta. Acudiu a filha, única pessoa com quem vivia depois da morte
da mulher e informada de que era o pai que ia na maca, começou a chorar, a
lamentar-se em altos gritos: que era uma desgraçada, que ficava só no mundo,
que antes Deus a levasse a ela que não fazia falta a ninguém, etc. Quando
as lamentações eram mais vivas, levanta-se a cortina de um dos lados da maca,
aparece a cabeça do Pina e disse-lhe isto:
- Não chores,
rapariga, que não há razão para isso!... Eu ainda não morri nem morro desta.
Cala-te e vai ver se arranjas um molho de palha para dar a estas bestas......
PS. O
texto está escrito tal como foi publicado em 1930, no jornal
“A ERA NOVA”
O
Albicastrense
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