O AMOR E A MORTE... NOS ANTIGOS REGISTOS PAROQUIAIS ALBICASTRENSES.
"O DOTE - (II)"
Por Manuel da Silva Castelo Branco
"O DOTE - (II)"
(Continuação)
Eis a petição que D. Isabel da Cunha (natural de Castelo Branco e irmã de D. Beatriz da Cunha, referida no Assento 50) fez ao juiz dos órfãos da dita vila com o fim de poder vender algumas fazendas e, assim, apurar os fundos necessários à sua entrada no convento de Odivelas (Lisboa).
Eis a petição que D. Isabel da Cunha (natural de Castelo Branco e irmã de D. Beatriz da Cunha, referida no Assento 50) fez ao juiz dos órfãos da dita vila com o fim de poder vender algumas fazendas e, assim, apurar os fundos necessários à sua entrada no convento de Odivelas (Lisboa).
” Senhor. Diz D. Isabel da Cunha, maior de 14 anos e
filha de Sebastião da Cunha e de D. Catarina da Fonseca, que por ela ser
mulher fidalga e nobre e muito pobre, segundo a qualidade da sua pessoa
e pela devoção que tem de servir a Nosso Senhor, quer ser freira
e está concertada para entrar no mosteiro de Odivelas, Ordem de S.
Bernardo, junto a Lisboa.
E, porquanto o que tem de sua legítima é tão pouco que não bastará para o dote com que
está tomada, nem para as mais despesas da sua entrada no noviciado
e profissão, nem ainda bastará toda a fazenda que ficou por falecimento
dos ditos seu pai e mãe; e seus irmãos, uns são homens que andam em serviço
d’ El-Rei nosso senhor nas partes da India e outros são religiosos, mas
todos haverão por bem venderem-se algumas peças da dita fazenda para
amparo e remédio dela, suplicante, pede a Vossa Mercê que, tomando a
informação necessária do sobredito e a que dará seu tutor e visto o
perigo que é na tardança (porque não entrando logo e pagando o seu
dote não poderá ser recolhida no dito mosteiro, como tem assentado), lhe
dê licença e autoridade parela e seu tutor venderem a Várzea que está
no Vale da Prata e o chão da Fonte Nova e um olival à Fonte do
Romeu e outro à Cardosa, por conta de sua legítima.
E, sendo caso que as ditas peças lhe não caibam e seus irmãos tenham parte de
suas legítimas nas ditas propriedades e não havendo por bem de as
renunciar nasuplicante, o Corregedor Diogo da Fonseca, seu tio, obrigará
peças da sua fazenda livres e desembargadas para nelas Vossa Mercê
entregar a seus irmãos o que lhes montar haver de suas legítimas nas ditas
propriedades. Castelo Branco, 9.8. 1582.“ (68)
Na posse desta petição, Fernão de Sotomayor, Fid. C. R. e juiz dos
órfãos de Castelo Branco, juntou-lhe o parecer escrito de Baltazar de Siqueira,
tutor e curador de D. Isabel, bem como a obrigação feita por seu tio, o
Corregedor Diogo da Fonseca. E, dando os Autos por conclusos, despachou
favoravelmente, pois, “visto a pouquidão da legítima dos pais, tal resolução constituía o melhor remédio
para a sua vida e, não aproveitando a ocasião, ficaria uma mulher tão honrada
perdida”. Enfim, as referidas fazendas foram vendidas a Jorge Vaz Carrasco,
cavaleiro fidalgo da C. R. e a sua mulher D. Ana Lopes, em 15.8.1582 e pela
quantia de 65 000 réis, os quais serviram de dote a D. Isabel da Cunha para
entrar no convento...
Por vezes, o dote não era constituído apenas por bens e valores materiais. Como
exemplo e entre outros, podemos apontar o caso de duas jovens, órfãs e com
magras legítimas mas de boas famílias, cujos casamentos se deveram à protecção
que lhes dispensou pessoa poderosa e de grande prestígio na corte.
Assim sucedeu no matrimónio
de D. Catarina de Siqueira com Pedro Vaz da Cunha, comendador do Castelejo e de
Alpedrinha, na Ordem de Cristo, de que houve honrada geração; e no de sua irmã
D. Maria com Mateus Lopes, cav°. fid. C. R., cujo 1° filho foi baptizado a
1.4.1560 (Assento 51).
Pertenciam elas a uma das mais antigas gerações da urbe
albicastrense, sendo filhas de D. Ana Dias Manso e Francisco de Sequeira da
Fonseca, senhor da casa e morgado dos Sequeiras, cav°. fid. C. R. (D. Manuel I
e D. João III) e cav° O. X°. (cujo hábito recebeu em Tomar, a 21.2.1528), que
tirou brasão de armas, esquartelado de Sequeiras e Fonsecas (14.4.1548) e
exercitou naquela vila vários cargos da governança: almoxarife dos direitos
reais, provedor da Misericórdia, capitão de ordenanças, etc. Por seu falecimento ficaram-lhe 4 filhas solteiras (D. Joana, D.
Catarina, D. Maria e D. Perpétua de Sequeira) com fracos recursos, pois o morgado
da família passou ao filho mais velho, Simão de Sequeira. Valeu-lhes nesta
difícil situação um tio, o Dr. Francisco Martins da Costa, que para todas
solicitou a proteção e valimento do Secretário de Estado Pêro de Alcáçova
Carneiro e de sua mulher D. Catarina de Sousa, aos quais escreveu diversas
cartas nesse sentido. De duas delas damos, seguidamente, alguns extratos:
- Ao muito magnífico senhor Pêro de Alcáçova Carneiro, secretário
d’El-Rei nosso senhor.
“Senhor. Depois da morte de Francisco de Sequeira escrevi a Vossa Mercê por um mercador e, porque não sei se lhe seria entregue, lhe torno a escrever esta e, assim, para lhe dar conta do que cá se passou para diligência da carta de Sua Alteza... Se Deus houver por bem que V Mercê haja de S. A. este olival para uma das filhas mais velhas, as quais se chamam: a maior, Joana e a outra Catarina; e, se a V M. bem parecer o oficio das sisas posto em quem casar com uma delas... pois, com o olival em uma e o oficio na outra, casarão estas maiores.
“Senhor. Depois da morte de Francisco de Sequeira escrevi a Vossa Mercê por um mercador e, porque não sei se lhe seria entregue, lhe torno a escrever esta e, assim, para lhe dar conta do que cá se passou para diligência da carta de Sua Alteza... Se Deus houver por bem que V Mercê haja de S. A. este olival para uma das filhas mais velhas, as quais se chamam: a maior, Joana e a outra Catarina; e, se a V M. bem parecer o oficio das sisas posto em quem casar com uma delas... pois, com o olival em uma e o oficio na outra, casarão estas maiores.
As outras duas pequenas seria bem meterem-se freiras e agora têm
idade para o efeito, mas esta entrada no mosteiro não pode ser remediada se por
V M. não for ordenada, pois as legítimas são pequenas e a Simão de
Sequeira fica a capela sem partilhas... (Castelo Branco,16.8.1541).” (69)
À muito magnífica senhora D. Catarina de Sousa, mulher do senhor
secretário d’El-Rei nosso senhor.
“Senhora. Pois Deus permitiu e quis dar vontade a V Mercê para que folgasse de favorecer
e fazer mercê a Catarina de Sequeira, filha de Francisco de Sequeira
que Deus tem, e foi bom princípio assim a de permitir que por sua mão
seja honrada e remediada e por o senhor Secretário. E, eu creio, que ela
remediada as outras filhas, que são além dela duas, o serão também.
E este remédio o dá V Mercê, pois não lhe pareça que somente pelo olival
que houve por morte de sua mãe, mas por se saber que era e é de V. Mercê
favorecida... e, com isto, um homem fidalgo e que tem muita renda quer
casar com ela (como lá escrevo ao senhor Secretário) e não aguardará
mais que a sua resposta de como é contente.
Peço a V M. por
mercê que faça com que ele escreva uma carta muito encarregada sobre o
caso (como ele melhor saberá fazer do que eu dizer, pois lhe dei larga
informação sobre o assunto), na qual toque no olival; que não tenha
nenhum escrúpulo e se, para mais riqueza e mor dote, V M. quisesse
escrever uma carta à mesma D. Catarina de Sequeira de favor e esperança,
de fazer por ela e por quem com ela casar, seria grande esmola e ajuda
para logo ser feito e ele se haver por muito ditoso... (Castelo Branco,
23.5.1546).” (70)
Para concluir, vou apresentar o documento mais interessante que
possuo sobre esta matéria. Trata-se de uma carta de meados de Setecentos, onde
o seu autor responde a um parente que a ele recorrera, solicitando-lhe a
opinião acerca do seu possível mas incerto enlace com uma menina bem dotada,
mas filha de um bastardo e neta de outro... O Leitor poderá apreciar, assim, a
mentalidade de uma época e de uma geração e, embora as principais personagens
pertençam ao distrito da Guarda, ali se acham referidas muitas outras de
diversas localidades da Beira Baixa, a saber: Caria, Castelo Branco, Covilhã,
Fundão, Oledo, Peroviseu, etc.
-”Meu primo e senhor. Recebo as suas boas notícias, que muito
estimo e a toda a família a quem me fará recomendado. Sim, senhor, a tal menina é bem dotada, todos lhe
fazem já da casa de seus pais 20 000 cruzados, seguros em boa casta de fazenda
e sólida; tem uns tios clérigos, que poderão também dar-lhe uma boa porção e é
muito bom casamento para um cavalheiro, que tem casa só para passar com
decência e não para maior esplendor. Conheço melhor que ninguém, que os tempos
estão tão alterados que só cavalos, criados e seges é que são respeitados por
grandes figuras.
O exame apertado de
nascimentos nesta matéria só é bom para Pedro Saraiva, Pedro Aragão e outros,
que têm grandes Casas e, por isso, disse eu a Vossa Mercê que lá pensaria e
resolveria com juizo, com os olhos no mundo, que V M tem palpado pelos seus
anos ainda melhor que eu, que nasci ontem. Se respondi a V M. que a tal menina
era filha de um bastardo e neta de outro, que o primeiro era clérigo sem
legitimação e desherdado da Casa de seu pai e havido nem uma criada, que o
segundo, sim, fora legitimado mas não herdado na Casa do clérigo seu pai e havido numa moleira, porque o clérigo bastardo
só olhou para a decência e esplendor da
Casa Rapa, a quem instituiu
herdeira com bons 30 000 cruzados de
fazenda que vinculou em morgado, reconhece que Miguel Alexandre é seu filho bastardo e lhe deixa como legado o que tinha em Caria, ficando estes
legados livres e sem a
qualidade de vínculo, que deu ao forte dos seus bens vinculados para a Rapa... Com que, meu senhor e primo, estes dois bastardos
seguem outro rumo que os mais
que por aí vemos.
Conheço que
há uma bastarda de João Pinto, do Fundão, mas ficou absolutamente herdada na Casa de seu pai e tias; conheço que há uma D. Maria de
Mendonça, bastarda de Manuel da
Fonseca morgado de Oledo, mas
ficou absolutamente herdada na Casa de seus pais e avós e representando a mesma figura e nome; conheço que houve José da Silva Castelo
Branco, bastardo do Dr. António
da Silva Castelo Branco, mas ficou herdado nos bens de seu pai, tias e
madrasta, legitimado e filho de
uma mãe tanto ou mais nobre que
o pai; conheço que houve Bernardo da Fonseca, bastardo de Francisco Martins de Siqueira da Fonseca, mas sei que ficou com a
representação e herança de seu
pai e avós, e que seu 3° neto vive em Castelo Branco no mesmo palácio em que aqueles viveram.
Nós não estamos nesse caso, meu primo... Miguel foi deserdado por seu pai nas forças
principais dos seus bens. O pai
quis o esplendor e a decência da
Casa da Rapa, a quem anexou em morgado o seu forte e apenas deixou em legado ao bastardo o que tinha em Caria e até lho deixou livre. O pai
era clérigo e um bastardo que
nem legitimado nem herdado ficou pelo
senhor da Casa da Rapa, seu pai. Se eu disse isto a V Mercê e se agora lho confirmo é porque mo pergunta, nem eu creio que haja ocasião em
que um parente e amigo honrado
deva falar com mais clareza e verdade. Sim, senhor, Manuel Veloso Cabral, pai do clérigo (1° bastardo), lá disse eu e
torno a repetir que é muito
distinto, dele descende a mulher do Dr. Luís António (que hoje tem o morgado que fez o clérigo bastardo) e a mulher de Diogo Dias Preto.
Mas ele ainda
tem outros parentes mais honrados, como são todos os mais distintos de Celorico e Guarda; tem muitos antepassados úteis à Nação nas armas
e letras, porque a Casa da Rapa
sempre se distinguiu muito e nunca fez casamentos piores que estes agora
em Peroviseu e Covilhã...
Lá os ascendentes
figuraram melhor
e conta uma igualdade em casamentos digna de muita atenção, cinco avós tem Manuel Veloso Cabral todos desembargadores: o primeiro,
João Veloso, mereceu a doação
de um morgado em Linhares,
constituído em terras da Coroa, de juro e herdade para ele e seus descendentes, que ainda hoje tem a Casa da Rapa e isto há 300 anos,
regalia e qualidade que V Mercê
me não há-de apontar em Casa nenhuma
destas 2 comarcas.
Ainda que meu primo é distinto, com igualdade e tem um casa muito boa, capaz de se tratar com decência, é contudo
prudência chegá-la a ponto de
figurar com esplendor e esta ocasião
não é para desprezar. Se os clérigos estão no que V. Mercê me diz e, maiormente, se eles concorrerem a dotar os seus bens, deve V
Mercê não perder com a demora,
e deixar escapar um dote que, facilmente,
não achará nestas terras. Em Caria há um clérigo, chamado o Pe. António Pires, que tem um bastardo e ouvi há anos que queria
legitimá-lo, mas agora ouço que
quer metê-lo numa religião.
Este é
tio da menina e tem bons 25 000 cruzados. Se V Mercê tratar alguma cousa, veja se ele doa e talvez o faça, pois já ele foi quem casou Miguel e lhe deu dinheiro para se desempenhar.
Se puderem vinculem essas doações, porque é miséria uma Casa tão boa não ter um palmo de terra vinculado e só ser
tudo livre e habilitado para
vir a retalhar-se em partilhas ou a
vender-se quando der num génio como João Soares Girão (da Covilhã), Agostinho Tavares (de Castelo Branco) e outros semelhantes. V Mercê tem
uso do mundo, sabe pensar e lá
fará com o acerto que costuma.
Veja se lhe sirvo de alguma cousa e conte com certeza o meu coração e o meu ânimo muito
pronto em obsequiá-lo, pois sou De
V Mercê O primo muito amante e
obrigado”.
(Continua)
O Albicastrense
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